domingo, 28 de agosto de 2011

O Grito


Foi numa tarde comum, no caminho de volta pra casa, depois de um dia que pareceu muito mais longo do que realmente foi. Eu já havia passado por uma situação que me incomodou bastante, no caixa de uma padaria há poucos dias. Dois meninos de rua, maltrapilhos, duas crianças, entraram com sessenta centavos a fim de comprar um doce. O que poderiam levar com aquelas moedas? Nada parecia alcançável para eles na busca por algum produto que trouxesse alegria e coubesse no valor de sessenta centavos. Enquanto procuravam, a atendente do lugar era cruel: "Esqueça, com esse dinheiro vocês não levam isso nem em sonho". Será - temo ao pensar nisso - que ser menino de rua, para ela, os tira da condição de humanos e os torna insensíveis, criaturas já maltratadas pela realidade que devem ser ainda mais pisadas?

O que aconteceu mais recentemente me fez reconstruir esse fato passado... Eu estava num ônibus. Lugar onde, comumente, entram adultos e crianças vendendo desde agulhas a canetinhas e panos de prato. Ver um adulto vender agulhas dói. Dói, porque no mundo em que vivemos, nessa sociedade extremamente consumista, vender agulhas não garante uma vida minimamente digna. Então o que fazemos diante da dor que surge em cada um de nós? Pensamos: "Ah, sociedade mais injusta... Uns com tanto, outros com tão pouco". Para alguns, a dor passa. Já outros ficam remoendo aquilo por dias... Ainda bem! Eis aí a esperança, a consolação que anuncia que nem todos perderam a capacidade de se indignar! Sentir-se incapaz diante dessas situações e esquecê-las é um crime. Se não nos movemos para mudar isso, ou se a verdade parece dura e sólida demais para ser moldada novamente, que pelo menos gritemos, que anunciemos, destaquemos o absurdo ao nosso redor. Que ao menos sejamos alguém para apontar veementemente a realidade, denunciando-a.

Se ver um adulto vender trecos para sobreviver é uma violência, ver crianças recorrendo a isso é inenarrável. Pois foi o que hoje eu vi. É o que, praticamente, todos nós vemos todos os dias, se tivermos ao menos a mínima consciência e não formos tão terrivelmente cegos. O menino devia ter uns sete anos, aproximadamente. Escola? Casa? Comida? DIGNIDADE? Os direitos andam tão em falta... Os direitos que nos fazem humanos, que nos fazem sentir respeitados e íntegros, que fazem com que nos sintamos alguém. Andaram em falta a ponto de uma criança como essa estar sumindo, sumindo, sumindo... Até que, um dia, ela se torna um invisível social, se já não o é. E, quando esse momento chega, ninguém mais percebe, ninguém mais enxerga, ninguém mais sente. A sociedade só passará a enxergá-los quando se sentir, de alguma forma, ameaçada.

Foi esse um dos fatos marcantes de hoje, 16 de agosto. O dia em que uma criança, um ser humano, vivo, carente, repleto de fomes, entrou no ônibus em que eu estava e, sentindo que a sua situação incomodava os demais, gritou: "Boa tarde, gente, desculpa incomodar o silêncio!"

E eu pensei comigo: grite, anuncie, mostre que existe, que tem necessidades, tanto quanto qualquer um de nós! Até o dia em que percebamos o real significado de gritos como esses.


(2010)

Sobre as Cercas


Ler o livro "O Menino do Pijama Listrado" e não se emocionar ou refletir é impossível, e creio que não haja exceções para essa regra. É verdade que o enredo é triste, causa raiva e uma dor incômoda. Mas digo e repito quantas vezes for necessário: entregar-se a essa história é uma experiência incrível que, de fato, vale à pena.

O autor nos transporta a um período conhecido, repleto de conflitos e muito sangrento de nossa história: a II Guerra Mundial. Cenário das maiores barbaridades e atrocidades cometidas pelo homem, em busca de ideais "plásticos" e vazios. Período famoso por ter como característica a imposição de grupos de homens sobre outros, arrancando-lhes direitos básicos, a dignidade e até a vida (qualquer semelhança com os nossos dias, talvez não seja mera coincidência). Não obstante, o clima desolador gerado pelo Holocausto é mesclado com algo cativante nesta história, o sentimento mais nobre, puro e capaz de nos fazer enxergar como verdadeiros homens, mulheres e, mais precisamente neste caso, crianças: o amor.

Falar de amor é tocar no âmago desta obra. Porque é falar no que foi capaz de tornar duas pessoas, que pareciam muito diferentes, iguais, apesar de terem sido rotuladas de maneiras distintas. Um era o filho do soldado e, portanto, tinha o direito à vida e aos bons tratos. O outro, judeu e, como nós muito ouvimos falar em aulas de história, vítima do anti-semitismo, da exploração, dos abusos e dos resultados de ter sido colocado numa posição inferior. Mas o lado poético disso tudo está no que eles dois foram capazes de fazer: ignorar o que lhes era imposto como verdade - principalmente Bruno, por ter ouvido falar que os judeus eram inimigos, maus, culpados do insucesso da Alemanha na I Guerra... - e abrir espaço para uma amizade que não via limites, barreiras ou perigos que fossem grandes demais.

Separados por uma cerca, os dois se viam sempre. Cerca essa que pode ser vista como uma metáfora para o que a humanidade é capaz de fazer: segregar, dividir, tornar melhor ou pior, privilegiado ou miserável... Triste poder que o mundo tem de pisar os outros, sejam eles judeus ou o que forem - vale lembrar que os judeus formavam apenas um dos grupos que sofreram e foram mortos durante a guerra. Pior do que olhar para trás, para os anos que se passaram e lamentar, é reconhecer que HOJE temos motivos de olhar ao nosso redor e deplorar também: mundo vil.

Portanto, é a mais pura verdade a mensagem que se encontra na orelha do livro: cercas como essa podem ser encontradas no mundo todo. E, como o autor, eu também espero que você nunca se depare com uma delas...

(2010)